Quanto mais nos adentramos nessa primeira década do século XXI, mais firme é
a sensação de que o projeto neo-liberal esgotou seu fôlego. O próprio
processo de globalização passa por uma fase de transição particularmente
conturbada. A crescente volatilidade dos mercados financeiros e a velocidade
de propagação mundial de seus impactos que já caracterizou a segunda metade
dos anos 90 encontra hoje as ameaças de uma recessão mundial. O
uniltateralismo da administração norte-americana parece sancionar, junto com
a volta de preocupações protecionistas das industrias domésticas, a
reafirmação da soberania nacional como marco necessário de uma nova geração
de políticas industriais e econômicas. Corolário quase que automático dessa
guinada das correlações de forças que atravessam a economia mundo, antigas
clivagens parecem se renovar voltando a opor o “centro” hegemônico americano
às periferias. Depois do 11 de setembro de 2001, a guerra global permanente
confirma o retorno de nítidos projetos de tipo imperialista por parte da
administração Bush. Novos e velhos fundamentalismos se alimentam
reciprocamente, como sinistras máquinas mortíferas, para afirmar que a única
saída do neo-liberalismo apenas pode acontecer de maneira reacionária e
conservadora: que seja por meio de um renovado populismo nacionalista e
imperialista ou de um reanimado populismo do fundamentalismo religioso. Nos
dois casos, a reação aos mercados e à globalização nos faz pensar à Europa
dos anos 30, quando o fascismo e o nazismo, com o apoio das elites
industrialo – militares nacionais, realizaram essas mesmas trágicas
operações e combateram o internacionalismo do movimento operário com a
demagogia xenófoba e anti-semita da luta contra o “capital cosmopolita”. A
guerra global permanente reproduz a transcendência dos mercados e da
soberania, mas desta vez na maneira regressiva de um poder definitivamente
insensato e paranóico que encara a própria globalização como um problema.
Agora, ao passo que o unilateralismo de Bush pode ser interpretado como
sendo uma reação (da "velha economia" do petróleo!) em face do fato que
também os Estado Unidos são sugados em um processo de globalização que não
conseguem dominar, uma nova geração de movimentos e conflitos sociais de
bases globais conseguiu afirmar as dimensões constituintes do Império. Desde
Seattle até Génova, a globalização apareceu definitivamente como um espaço
aberto a um novo tipo de lutas. Em Génova, nas formas originais de
organização em rede de redes do Genoa Social Forum, o chamado "povo de
Seattle" anunciou a transformação das manifestações de Praga, Gotemburgo e
Quebeque City contra as cúpulas do FMI, da OMC e do BM em um verdadeiro
ciclo de lutas cujo ator é um movimento múltiplo (feito de muitos
movimentos), globalizado (feito de fluxos de movimento globalizados) e
constituinte (embrião de novos modos de mobilização social, de um novo modo
de produção e subjetivação ). A "fenomenologia" do "movimento dos
movimentos" é capaz de colocar, na sistemática deslegitimação de uma
soberania imperial fundada em sua efetividade, ou seja na lei da força, a
questão da determinação ontológica dos processos contemporâneos de ruptura
com a ordem capitalista do mundo. Nesse novo cenário o Fórum Social Mundial
de 2002, em Porto Alegre, deu um grande passo para frente, para além o mero
contraponto "social" aos "donos" da economia (o Fórum de Davos), abrindo
brechas significativas para além do discurso neo-soberanista (e
anti-globalização) que tanto marcou sua primeira edição (em 2000) e
continuou marcando sua representação "formal", a que apareceu nos mídias
nacionais e internacionais . E isso, graça ao fato que o FSM de 2002 tinha
duas novas pernas. Uma delas estava em Génova, a outra estava com certeza
logo do outro lado da fronteira gaúcha, em Buenos Aires. Em dezembro de
2001, a longa agonia da Nação argentina acabou explodindo quando as
multidões arrastaram a pávida política de De La Rua (sob os auspícios do FMI
e do BM) e ao mesmo tempo negaram qualquer legitimidade ao nacionalismo
peronista: Que se vayan todos, que no quede ni uno solo!. É exatamente na
tragédia argentina que encontramos, de maneira ainda mais potente, as tramas
do trabalho e de uma possível política da multidão.
Na Argentina, a multidão apareceu como sendo o "conteúdo do qual o Império é
o contendor". As manifestações insurreicionais de 19 e 20 de dezembro de
2001 não derrubaram apenas o governo, mas sobretudo abriram um formidável
período de experimentação e inovação social, econômica e política. As
interrupções de estradas pelos piqueteros, os cacerolazos das chamadas
classes médias urbanas, o assédio sistemático aos bancos pelos ahorristas,
as assembleias barriales y interbarriales, a autogestão de fábricas falidas
pelos trabalhadores demitidos e as redes de economia solidária (red global
del trueque) constituíram uma nova configuração do "movimento dos
movimentos". No "quilombo" argentino , o êxodo das políticas neo-liberais
aparece como êxodo constitutivo de uma possível política da multidão. Uma
análise tradicional de sua composição social esbarraria imediatamente em
suas dimensões fragmentárias e, por isso, inconciliáveis: classes médias
urbanas, por um lado, e proletários desempregados da periferia, pelo outro.
Como explicar a junção de figuras sociais tão diferentes no plano da
composição de interesses e sobretudo pelo tipo de inserção e posicionamento
que elas tinham no próprio período neo-liberal ? Como explicar a completa
derrocada de qualquer forma de representação e a deslegitimação de toda
instância de poder constituído ? Para além as dificuldades que o movimento
argentino pode estar enfrentando e enfrentará, seus elementos constituintes
permanecem e permanecerão como um patamar essencial para o "movimento dos
movimentos", para se pensar o próprio conceito de multidão e as
possibilidades de juntar o desenvolvimento da riqueza ontológica da multidão
cooperante (o trabalho da multidão) com a capacidade de opor-se de maneira
eficaz ao poder capitalista (a política da multidão). O movimento argentino
constituiu-se num evento sem finalidade definida, numa ruptura, numa mudança
da percepção coletiva. Ou seja, com o movimento argentino podemos pensar
materialmente uma multidão capaz de decidir e, pois, as possibilidades de
realização da democracia.
Quais são os elementos constituintes do "quilombo" argentino ?
O primeiro tem a ver com a desmentida cabal de que haja qualquer
determinismo entre a dissolução da relação salarial canónica e o inevitável
enfraquecimento dos movimentos sociais. Pelo contrário, o quase
desaparecimento do operariado sentado num contrato de trabalho a tempo
indeterminado e garantido pela dupla representação do sindicalismo peronista
e do Estado, por um lado, não impediu as recentes, maciças e radicais
mobilizações sociais. Por outro, constituiu-se numa de suas condições
necessárias. Aliás, uma das operações mais aventurosas, do próprio ponto de
vista do poder, do neo-liberalismo à la Menem foi justamente a de ter
destruído parte expressiva da força de "los gordos" , ou seja da burocracia
sindical peronista e, com ela, parte da espessa malha corporativa de
privilégios e redes clientelistas e mafiosas que constituía o verdadeiro
lastro de cumplicidades sociais nas quais navegava o navio pirata da
ditadura e do justicialismo. . Da mesma maneira do que aconteceu nos países
socialistas, a crise do desenvolvimentismo na América Latina em geral e na
Argentina em particular é fortemente determinada pela falta daquelas
características de liberdade que são necessárias para ter acesso à
pós-modernidade, ao pós-fordismo. Os regimes de controle estatal do
nacional-desenvolvimentismo eram incapazes de introduzir aqueles elementos
de liberdade e de inovação/invenção por parte do trabalho vivo que são
necessários para ser uma sociedade civil. É claro, os neo-liberais fizeram
pagar o altíssimo preço dessa passagem (baseado no desmonte do pacto
corporativo-estatal) aos próprios operários e à sociedade argentina como um
todo. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que o neo-liberalismo, na América
Latina da mesma maneira que nos Estados Unidos e na Europa ocidental e, como
dissemos, nos países do "socialismo real", afirmou sua hegemonia também
porque soube captar e instrumentalizar uma vasta demanda popular de ruptura
do emaranhado de privilégios privados e corporativos incrustados na
hegemonia, real o tendêncial, da relação salarial. O desmonte de parte
desses privilégios produziu privilégios e tragédias ainda piores, mas acabou
também deixando um espaço aberto para formas de participação popular antes
impensáveis. A potência do movimento argentino, apesar da inexistência das
tradicionais relações sociais baseadas no emprego formal e sindicalizado,
mostra ô quanta liberdade pode gerar a crise da relação de servidão que é o
trabalho assalariado. A multidão acabou se afirmando como o conteúdo da
globalização, o seja afirmando sua força produtiva enquanto potência de ser
comum, produção: produção enquanto força habitada por uma teleologia
imanente à sua essência afirmativa. Esses agenciamentos produtivos são a
realidade do Império: são as lutas da multidão que produziram o Império
enquanto inversão e sua própria imagem.
O segundo elemento nos introduz diretamente no cerne da composição técnica
das camadas sociais que constituíram o "quilombo de los pampas". Como foi
possível a recomposição política entre, por um lado, os piqueteros
desempregados excluídos pela reestruturação produtiva e as políticas
neo-liberais de corte da despesa pública e, por outro lado, os incluídos: –
os "ahorristas" com suas contas em dólares e os trabalhadores urbanos dos
serviços (privatizados) que desfrutaram por anos do poder de compra
artificial proporcionado pela irresponsável política monetária do currency
board ? Isso foi possível porque essa duas figuras sociais tinham e têm
muitas mais coisas em comum do que a tradicional teoria das classes pretende
e o comando tenta esconder. O neo-liberalismo, ainda mais na América Latina
do que na Europa e nos Estados Unidos, representou também uma tentativa de
implementar novas condições de valorização procurando a nova potência
ontológica do trabalho. Em face, o que sobrava do movimento operário,
traindo sua tradicional vocação de antecipação do capital na dinâmica do
desenvolvimento, se retirava cada vez mais dentro de fronteiras
conservadoras e corporativas. Para além as ilusórias metas de estabilização
macro-econômica por meio das manipulações das taxas de cambio e juros, as
políticas neo-liberais visavam propor, pelas privatizações e a lógica do
mercado, um espaço público de cooperação social sem o qual o novo regime de
acumulação baseado no trabalho imaterial não é minimamente viável. Mas esse
espaço de mercado apenas é um sucedâneo do espaço público, incapaz de
mobilizar os territórios produtivos das redes. Numa primeira fase, isso
parecia até funcionar: não é por acaso nem por mera manipulação da opinião
pública que Menem conseguiu se confirmar facilmente no segundo pleito
eleitoral. Naquele primeiro momento, embora de modo completamente
superficial e instável, a dinâmica de mercado conseguiu dissipar os efeitos
de distorção óptica da hiperinflação e tornar mais transparentes o sistema
dos preços relativos (e, pois, as condições reais de distribuição da renda).
Alcançaram-se também aumentos significativos de produtividade e sobretudo
níveis bem mais dinâmicos de universalização dos serviços do que conseguia
fazer o Estado autoritário e corporativo do nacional-desenvolvimentismo.
Nesse deslocamento e num primeiro momento, as políticas neo-liberais
conseguiram ler e interpretar a potência de um novo tipo de trabalho,
fundamentalmente baseado em suas dimensões imateriais, ou seja afetivas,
inteletuais, comunicacionais, linguisticas. Um trabalho cuja socialização
tendecialmente independe da relação salarial e cuja produtividade está
atrelada, ao mesmo tempo, aos níveis de sua socialização e aos de sua
cidadania material: ou seja à universalização dos serviços básicos e
avançados. É claro, como dissemos, esse deslocamento foi superficial e
parcial. Os neo-liberais não se apoiaram em nenhum pacto social, nem na
única genealogia possível desse deslocamento, aquela das lutas contra a
sociedade disciplinar do trabalho. O único recursos que podiam mobilizar era
constituído apenas pelas técnicas monetárias preconizadas pelo "Consenso
Washington". Ao invés de construir uma esfera pública de cidadania
produtiva, foram privatizando o que devia ser comum e, construindo regimes
cada vez mais fragmentados e diversificados de acesso aos serviços pela
dinâmica do poder de compra, acabaram amplificando loucamente os níveis de
exclusão social. O que, dessa maneira, os neo-liberais fragmentavam era a
própria possibilidade de constituir a composição técnica de um novo tipo de
trabalho socializado, cuja produtividade dependia cada vez mais dos níveis
de singularização e de igualdade (de cidadania material) de uma multidão de
trabalhadores. Mas, o que as políticas neo-liberais fragmentavam e o
corporativismo sindical nem reconhecia, o trabalho da multidão foi capaz de
juntar, ontologicamente. No "quilombo" argentino, excluídos e incluídos não
se encontraram a partir de uma improvável aliança táctica entre as classes
médias e o proletariado das periferias, mas enquanto eles formavam as duas
faces de uma mesma composição técnica do trabalho: a do trabalho imaterial.
Para o capital, a reprodução do comando tem como condição necessária a de
mobilizar sem reconhecê-lo esse novo tipo de trabalho. Flexibilização e
desemprego aparecem como as duas faces de um modo de controle do trabalho
que passa essencialmente pelas técnicas administrativas de multiplicação
dos estatutos da "mão de obra" e, mais em geral, das condições nas quais
"tem-se direito aos direitos". No "quilombo argentino" não houve nenhuma
aliança, nem fragmentação social, mas uma nova figura de classe protagonizou
o movimento dos movimentos argentino: a multidão. É nesse sentido que a
multidão é um conceito de classe. Ela é sempre produtiva e em movimento.
Considerada de um ponto de vista temporal, a multidão é explorada na
produção; vista de um ponto de vista espacial, ela é ainda explorada
enquanto que ela constitui sociedade produtiva, cooperação social para a
produção. O conceito de "classe de multidão" deve ser considerado
diferentemente do conceito de classe operária. Com efeito, o conceito de
classe operária é um conceito limitado, tanto do ponto de vista da produção
(inclui essencialmente os trabalhadores da industria) quanto do ponto de
vista da cooperação social (envolve apenas uma pequena quantidade dos
trabalhadores que operam no conjunto da produção social). Se colocamos a
multidão como um conceito de classe, a noção de exploração será definida
como exploração da cooperação: cooperação não dos indivíduos, mas das
singularidades, exploração do conjunto das singularidades, das redes que
compõem o conjunto e do conjunto que envolve as redes etc.
O terceiro elemento constitutivo do "quilombo" argentino tem a ver com o
fato de que nas novas dimensões ontológica da produção, o trabalho e a
política da multidão tendem a coincidir. Organizar a luta e organizar a
produção, fenomenologia das lutas e ontologia do trabalho tendem a ser
exatamente a mesma coisa: resistir e produzir. É o que afirmam os jovens do
Afro Reggae, tentando organizar a resistência dos negros nas favelas do Rio
de Janeiro por meio da produção de estilos e formas de visa. A multidão
aparece como conceito de uma potência: ela é a condição da nova potência
produtiva baseada na produção de "mais ser". Essa potência não quer apenas
se expandir, ela pretende sobretudo construir um corpo: o elemento
constitutivo da multidão é a carne no sentido de Merleau Ponty: ou seja uma
coisa geral, um tipo de princípio incarnado que importa um estilo de ser em
cada lugar onde se encontra uma sua parcela. A carne é nesse sentido "um
elemento do ser" , a substância viva e comum na qual corpo e intelecto
coincidem. A carne da multidão quer se transformar em corpo do General
Intellect. As tentativas neo-liberais de suscitar o deslocamento ontológico
do trabalho (do trabalho fordista e industrial para o trabalho pós-fordista
baseado na massificação da intelectualidade e na centralidade do trabalho
vivo) esbarraram inevitavelmente, por um lado, na incapacidade do mercado
dar conta das dimensões cooperativas e linguisticas do trabalho imaterial e,
por outro, na redução da singularidade do trabalho vivo operada pelos
próprios processos de fragmentação e exclusão do corpo social, ou seja pela
reiterada tentativa de mensurar (unificar e homologar dentro cada fragmento)
o que é e deve ser incomensurável (a multiplicidade do conjunto). Se nos
pontos mais avançados das lutas contra o trabalho assalariado o
neo-liberalismo conseguiu interpretar a mudança ontológica do trabalho, nos
países em desenvolvimento seus instrumentos tornaram-se completamente
ineficazes. Na Argentina, essa vontade de transformar a carne da multidão em
intelectualidade de massa se constitui no movimento que explode nos dias 19
e 20 de dezembro de 2001, retomando e atualizando a longa trama da
genealogia de multidão, ou seja a trama das lutas da classe operária que
dissolveram as formas de disciplina social da modernidade. A política da
multidão é constitutiva do trabalho da multidão, e vice-versa,
definitivamente fora da dialética "capital/trabalho" cuja síntese é sempre o
desenvolvimento do capital. Com efeito, o poder não pode absolutamente nada
fazer, pois as categorias que interessam o poder foram ultrapassadas:
unidade do sujeito (povo), forma de sua composição (contrato entre os
individuos) e modo de governo (monarquia, aristocracia e democracia, simples
ou combinadas). A mudança radical do modo de produção que aconteceu pela
hegemonia da força de trabalho imaterial e do trabalho vivo cooperativo –
revolução ontológica, produtiva e biopolítica no pleno sentido do termo –
isso tudo virou pelo avesso os padrões do bom governo e destruiu a idéia
moderna, desde sempre desejada pelos capitalistas, de uma comunidade que
funciona completamente voltada para a acumulação capitalista. O conceito de
multidão nos introduz, pois, num mundo completamente novo, nos mergulha numa
revolução em andamento.
O quarto elemento do "quilombo argentino" tem a ver justamente com as
dimensões constituintes da política da multidão, ou seja com as relações que
ligam o trabalho da multidão às questões da democracia e, pois, da moeda. O
cacerolazo foi, antes de mais nada, o momento no qual uma multidão de
trabalhadores imateriais da grande Buenos Aires afirmava um espaço material
da democracia desafiando o estado de sítio recém declarado: "La
espontaneidad de este primer gran cacerolazo, sin duda, una de sus
principales características, pudo reconocerse en el detalle de la vestimenta
de los participantes. Saltos de cama, pantuflas (…) simbolizaban el
inmediato tránsito de lo privado a lo público. Los vecinos iban sumándose
sin saber adónde se dirigían" . Exatamente vinte anos depois a queda
"formal" do regime dos torturadores, de duas décadas de "abertura"
democrática sob a chantagem de um equilibro de forças sobre-determinado pela
ameaça autoritária, é nas assembleias de bairros, nas redes alternativas de
economia solidária, nos piquetes dos desempregados, nas fábricas da
autogestão e nas grandes manifestações de 19 e 20 de dezembro que enfim
"acabó el miedo". A resistência das madres e abuelas da Praça de Maio
emergiu como uma potente referência ética. Não apenas pelo desmoronamento
de todo o dispositivo de terror estatal em face da mobilização da multidão,
não apenas pela participação ativa das organizações de defesa dos direitos
humanos nas mobilizações, mas também e sobretudo pela apropriação que o
movimento fez das formas de luta dos familiares das vitimas da repressão, em
particular com a proliferação do "escrache" que, até então, era praticado
contra os torturadores e que agora vai dirigindo-se contra toda a classe
política. Acabou o medo e a democracia se abriu materialmente como espaço
público de construção do comum. A virtude se opõe à fortuna e à corrupção.
Após a renuncia do governo, a multidão pediu a renuncia da Corte Suprema de
Justicia. A crise do Estado encontra enfim uma outra dinâmica que a do
mercado: ao passo que a chantagem do terror desmorona em face da nova
determinação democrática, a democracia da multidão afirma a impossibilidade
radical de ser representada: "que se vayan todos, que no quede ni uno
solo!". A multidão não é representável como a unidade (o povo) dos
indivíduos proprietários, pois ela é um conjunto de singularidades
incomensurável. A multidão aparece, pois, como o nome de uma imanência, um
conjunto de singularidades. A multidão é o povo sem a transcendência, ou
seja uma situação na qual a soberania não pode ser separada de seu
exercício. Ao contrário do que afirmam Hobbes, Rousseau e Hegel e muitos
observadores contemporâneos da crise Argentina, a multidão sem o soberano é
o contrário do caos, da violência e da guerra. Na Argentina, onde começa a
multidão e sua potência acaba o poder do Estado (de terror) e o caos dos
mercados: – "acabó el miedo". A multidão não tem nada a ver com os
indivíduos proprietários, pois ela é o fato de singularidades não
representáveis : "que se vayan todos!". Mais uma vez, o conceito de
multidão é incompatível com o de povo. A multidão não pode ser apreendida
nem explicada nos termos do contratualismo. Em seu sentido mais geral, a
multidão se recusa à representação pois ela é uma multiplicidade
incomensurável. O povo é sempre representado como uma unidade ao passo que a
multidão não é representável. Em oposição ao conceito de povo, o conceito
de multidão é o de uma multiplicidade singular, de um universal concreto. O
povo constituía um corpo social; a multidão não, pois ela é a carne da vida.
Si opomos a multidão ao povo, temos também que opô-la às massas e à plebe.
Massa e plebe foram muitas vezes palavras usadas para nomear uma força
social irracional e passiva, perigosa e violenta, pelo fato preciso de ter
sido facilmente manipulável. A multidão é um ator social ativo, uma
multiplicidade que age. Ela não é, que nem o povo, uma unidade mas nos
podemos vê-la, em oposição a massa e plebe, como algo organizado. Trata-se
com efeito de um ator ativo de auto-organização. Uma das grandes vantagens
do conceito de multidão é, pois, o de neutralizar o conjunto dos argumentos
modernos baseados sobre o "medo das massas" ou sobre a "tirania das
maiorias", argumentos muitas vezes utilizados como uma forma de chantagem
para obrigar-nos a aceitar (inclusive a pedir) nossa própria servidão.
A multidão não é, pois, representável e sua política é constituinte de
democracia absoluta, ou seja não limitada per nenhum princípio externo, por
nenhuma transcendência, por nenhuma soberania que não coincida com sua
própria ação. A opção pela multidão é escolha de um sujeito de ação política
que não seja marcado por nenhuma separação, um sujeito comunista, no sentido
que ele recusa toda particularidade dos dispositivos e das esferas de
subjetivação. Comunista no sentido que o que age nele é a potência do que
faz ser os seres em comum.
Só o trabalho da multidão pode, de maneira imprevisível e intempestiva,
constituir as bases para o deslocamento ontológico do modo de produção (para
o modo de produção imaterial) e as condições que a democracia se torne a
base da moeda e, pois, do desenvolvimento como desenvolvimento da liberdade.
Como diria Paolo Virno, o desmoronamento da representação política não tem
nada a ver com um ato anarquista, mas com a procura tranquila e realista de
instituições políticas que fujam aos mitos e aos ritos da soberania. Nesse
sentido, a política da multidão não compõe com nenhuma política econômica
que faz da moeda a base de sustentação da democracia: nem no caso das
técnicas da macroeconomia neo-liberal, nem no caso da soberania
transcendental do Estado. A moeda que a política da multidão constitui na
Argentina funciona como uma instituição paradoxal, inseparável da luta e,
nessa medida, abre agenciamentos sociais e jurídicos impensáveis até então.
A política da multidão mostra como, sem difusão do saber e emergência do
comum, não seja possível encontrar nenhuma das condições necessárias para
que uma sociedade livre possa viver e se reproduzir. A liberdade, de fato,
como libertação do comando, não é materialmente dada que pelo
desenvolvimento da multidão e por sua constituição enquanto corpo social das
singularidades.
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