2. Sur l'Argentine

Piqueteros : Dilemas e potencialidades de um movimento que emergiu apesar do estado e à margem do mercado

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Ce texte est la version originale de art1181 Pontos de partida

As manifestações de insurreição e desobediência que tiveram lugar na Argentina entre os dias 19 e 20 de dezembro de 2001 inauguraram claramente um novo ciclo político na história do país. Sem dúvida, esses acontecimentos representam um momento de corte e ruptura, tanto no que diz respeito às dinâmicas das lutas, quanto às formas de entender e fazer política. Nessa ocasião, o foco da insurreição foi não apenas a corrupção da democracia local – que tinha se transformado em uma simples questão formal, reduzida ao ato de votar – mas também a rejeição às políticas neoliberais, e as múltiplas formas de governança global.
Nos dias 19 e 20 de dezembro, quando os argentinos saíram às ruas batendo panelas, mandando literalmente “todo mundo embora”[[O grito “que se vayan todos, que no quede ni uno sólo” – que todo mundo vá embora, que não fique mais ninguém – esteve presente ao longo das sucessivas manifestações ocorridas durante e após os acontecimentos de dezembro. Através desta frase mais do que significativa, a multidão conseguiu expressar, não apenas a sua recusa, a sua rejeição, mas também (e principalmente) a sua afirmação, a sua necessidade de ser a favor, isto é, de construir uma nova experiência criativa e constituinte. , ninguém poderia imaginar que apenas um ano e meio mais tarde o processo eleitoral acabaria reduzido a “opção” entre dois candidatos oriundos de um mesmo partido político, que foi aquele que levou claramente o país à bancarrota.
Porém, a pergunta que se impõe quando olhamos a Argentina hoje é: como interpretar o curso dos acontecimentos de dezembro de 2001 e dos movimentos emergentes no momento atual da história do país? Que aconteceu com as assembléias de bairro e com o movimento piquetero? Que foi feito da emblemática frase “Que se vayan todos, que no quede ni uno solo”?
Estas perguntas são, sem dúvida, muito difíceis de responder mas, numa primeira tentativa, podemos dizer que na Argentina, após os acontecimentos de dezembro, aconteceu muito menos do que se esperava, e mais do que ninguém jamais imaginou. Isto porque, sem dúvida, a dinâmica inovadora de que se investiu a insurreição argentina instalou novas formas de ação política e coletiva que foram muito além dos limites do estado e da democracia representativa.
Mas também, fazendo uma rápida observação na conjuntura política do país, podemos reconhecer que “o movimento” – no sentido amplo do termo – entrou num verdadeiro impasse[[Ao falar de impasse, apontamos aqui a idéia de que o movimento perdeu a potência inicial adquirida após os acontecimentos de dezembro. No entanto, apesar de sermos capazes de reconhecer o impasse, ainda observamos uma importante atividade política do movimento piquetero que continua realizando cortes de estradas ao longo do país; das assembléias de bairro que seguem ativas nos grandes centros urbanos; das fábricas recuperadas e auto-geridas pelos próprios operários; e do movimento dos correntistas que reclamam a devolução do dinheiro confiscado pelo sistema bancário (“corralito”). . Para alguns, trata-se de uma derrota, de uma experiência fracassada, de uma força completamente dizimada, perdida ou fagocitada pelas estruturas partidárias e pela lógica corporativa. Não faltaram sequer intelectuais, jornalistas e políticos que, nesse cenário e através de diversos meios de comunicação, começaram a comemorar a volta da “normalidade institucional” anunciando, ao mesmo tempo, que a ameaça das “massas” nas ruas ocupando espaços públicos já fazia parte do passado. Os resultados das eleições também foram divulgados “para dentro” e “para fora” do país não apenas como indicadores de que na Argentina a crise política estava sob controle, mas também para deslegitimar as teses que tinham colocado o movimento de resistência numa dimensão global, como exemplo ilustrativo da emergência de novos sujeitos e formas de organização política.
Porém, tanto o exacerbado “otimismo oficial” – “tudo acabou” – quanto o pessimismo são sensações por demais prematuras. Neste contexto, parece-nos importante observar e resgatar os estilhaços que se espalharam para todos os lados e que, de uma forma ou de outra, conseguiram mudar não apenas o discurso dos argentinos, mas também, e daí em diante, os modos de pensar e exercer a política e a democracia. E é por isso que para nós é fundamental continuar a pensar no movimento porque ele é uma força que se desloca, contaminando e sendo apropriada por sujeitos e situações divergentes, traçando novos trajetos, construindo novos tempos e espaços, criando dinâmicas verdadeiramente inovadoras e dando lugar à emergência de novas linguagens e experiências políticas.
Sem dúvida, neste cenário, o movimento piquetero ocupa uma atenção especial. O “exagerado” interesse[[O exagerado interesse ao qual fazemos alusão provém tanto da imprensa (nacional e internacional) quanto de pesquisadores e acadêmicos do mundo inteiro. Em matérias publicadas em diversos jornais chegou-se até a falar em “Turismo piquetero” para fazer referência às “visitas” que o movimento recebe de forma permanente, orientadas a conhecer as estratégias de luta, princípios e formas de organização e produção etc. do movimento. pela luta piquetera constitui um indicador significativo que permite apreender a potência do movimento. Apesar de reconhecer inúmeras “tensões” nas concepções e nas ações conduzidas por este movimento coletivo, entendemos que ele representa uma “nova” força política que emergiu à margem das organizações tradicionais – sindicatos e partidos políticos – e dos “clássicos” aparelhos de controle. É por esta razão que os piqueteros constituem efetivamente um movimento político de tipo novo: porque conseguiram implementar não apenas ações inovadoras de desobediência e resistência, mas também práticas políticas baseadas na democracia direta, na horizontalidade, na autogestão e na autonomia.
Ao mesmo tempo podemos observar que as dinâmicas e ações conduzidas pelo movimento conjugam elementos velhos e novos, tanto no que diz respeito às formas de organização, estratégias de luta e negociação, quanto às suas concepções e reivindicações políticas. Em suma, por tratar-se de um autêntico “movimento de movimentos”, esta experiência não pode ser agregar num modelo único. Trata-se então de um sujeito político que, longe de ser unitário, faz da luta contra a atomização e a exclusão social um instrumento para o reconhecimento de uma identidade múltipla, plural e híbrida.
Neste trabalho escolhemos centrar nossa análise no movimento piquetero que, sem dúvida, adquiriu particular visibilidade e significância a partir dos acontecimentos de dezembro de 2001. Nossa escolha se justifica pelo fato de acreditarmos que essa experiência é ilustrativa da emergência de uma dinâmica política que deu origem ao surgimento de novos sujeitos políticos e a novas formas de organização coletiva, apesar das inúmeras tensões e dilemas que ainda persistem “dentro” e “fora” do movimento.

Origens da experiência piquetera…

No ano de 1991 – isto é, no início da era menemista[[A era menemista estendeu-se de 1989 a 1999, compreendendo as duas gestões presidenciais de Carlos Menem, de seis e quatro anos respectivamente. -, e no contexto de otimismo econômico produzido pela implementação do plano de conversibilidade[[O Plano de Conversibilidade foi implementado em 1991 durante a gestão do Presidente Menem e de seu Ministro Domingo Cavallo e estabelecia a paridade cambial entre o peso e o dólar (1$ = 1US$). Este plano vigorou até o final de 2001. – a Praça de Maio recebeu uma multidão “inclassificável” de sujeitos que reclamavam pelo fechamento das empresas SOMISA[[Sociedad Mixta Siderúrgica Argentina. Empresa produtora de aço localizada na Província de Buenos Aires, era a maior exportadora industrial do país antes da privatização ocorrida entre os anos de 1991 e 1992. e HIPASAM[[Hierro Patagónico Sociedad Anónima Minera. Esta empresa, vinculada à extração/produção de minério, era formada por Fabricaciones Militares e pelo Banco Nacional de Desarrollo de la Provincia de Rio Negro. Foi fechada definitivamente no ano de 1992. – situação que não apenas gerou centenas de demissões, mas também criou (alguns meses depois) as primeiras “cidades fantasmas” do país. Esse ato foi verdadeiramente inusitado e significativo: pela primeira vez em muitas décadas um grupo de desempregados realizava uma manifestação pública de protesto fora do enquadramento tradicional dos partidos políticos e sindicatos, manifestando inclusive sua rejeição às modalidades de atuação daquelas organizações políticas “clássicas”. Alguns meses mais tarde, em setembro de 1991, a cidade de Sierra Grande – sede da empresa HIPASAM – foi protagonista de uma das primeiras puebladas[[O termo pueblada que não encontra definição nos dicionários da língua espanhola, alude claramente a situação de revolta massiva protagonizada e conduzida de maneira espontânea por grupos ou coletivos que envolvem um número significativo de habitantes de uma cidade ou povoado – pueblo -. Hoje este conceito está completamente incorporado à cultura política argentina para fazer referência aos acontecimentos de rebelião social que emergiram ao longo da era menemista e que atingiram o ápice nas jornadas de dezembro de 2001. do país. Naquela ocasião, todos os estudantes secundários (de nível médio) da cidade organizaram uma sentada[[Forma de protesto que consiste em ficar sentado (normalmente no chão) a fim de paralisar as atividades e interditar a circulação. na escola técnica local, reclamando contra o fechamento da fábrica, enquanto as mulheres dos mineiros – que se manifestavam na cidade de Buenos Aires – conduziam o corte da Estrada Nacional Nº 3[[Esta rodovia é uma das principais do país já que conecta a Capital Federal com o sul da Província de Buenos Aires e com a Patagônia., dando origem aos primeiros piquetes[[ Os “piquetes” constituem a estratégia de luta do movimento piquetero e consistem na interdição de estradas e vias que conectam, por exemplo, plantas petrolíferas a centros urbanos. da década.
Apesar dos acontecimentos de HIPASAM – como tantos outros que também tiveram lugar ao longo da década de 90 – constituírem um importante antecedente na emergência da experiência piquetera, o movimento se consolida efetivamente a partir dos eventos de Cutral-Co e Tartagal, entre maio e junho de 1997. No contexto da privatização da empresa petroleira YPF[[A empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales – YPF foi comprada a partir do processo de privatização pela empresa REPSOL (capital espanhol). , os trabalhadores demitidos, com apoio dos moradores, interditaram a estrada nacional 22, interrompendo assim um circuito de comunicação chave entre a o norte da Patagônia e o resto do país. Esses protestos – que também assumiram a forma da pueblada – tiveram, sem dúvida, um grande impacto econômico, político e social.
A fim de controlar a propagação dos piquetes e de desarticular o movimento emergente, o Governo Federal, valendo-se de particulares estratégias de “negociação” – no caso de tipo clientelista, via cooptação – iniciou a distribuição de subsídios aos desempregados denominados planes trabajar[[Os planes trabajar consistem em um subsídio que o governo outorga mensalmente aos membros do movimento, com um valor de 150$ (US$ 50). Este aspecto será abordado em profundidade na próxima seção. . Porém, e contrariando as previsões, os grupos piqueteros começaram a se multiplicar e se espalhar ao longo do país, principalmente na região metropolitana de Buenos Aires, região onde os indicadores de desemprego alcançaram (e ainda alcançam) cifras verdadeiramente assustadoras[[O aumento significativo do desemprego na Argentina começa a se registrar a partir de 1995. Segundo as pesquisas do INDEC – Instituto Nacional de Estadísticas e Censos – o desemprego atingiu naquele ano 18,4% e o sub-emprego 7%. Em 1997 registrou-se que 16,1% da população estava desempregada e que 8,4% encontrava-se sub-empregada. .
Em 1997 foram registrados 23 piquetes ao longo do país que só puderam ser interrompidos após árduas negociações e com a distribuição de novos planes trabajar. Mas, efetivamente, a expansão do fenômeno produziu-se durante a gestão de De la Rúa.
Com o duplo propósito de tentar controlar e limitar o crescimento do movimento e procurando ao mesmo tempo afetar principalmente a expansão dos pequenos grupos emergentes na área metropolitana de Buenos Aires, o Ministério de Desenvolvimento Social – sob responsabilidade de Graciela Fernández Meijide – introduziu uma modificação na administração dos planes trabajar. Na ocasião propunha-se a designação de ONGs que atuariam como responsáveis pela distribuição dos subsídios. Porém, ao invés de conter a prática piquetera, essa política (que acabou fracassando) serviu para organizar e potencializar ainda mais o movimento e as suas atividades combativas.
Se no período compreendido entre 1997 e 1998 registraram-se 191 piquetes ao longo do país, entre os anos de 1999 e 2000 eles passam a ser 766, abrangendo todo o território nacional[[Fonte: Jornal CLARÌN; Piqueteros: los cortes de ruta y el clima de violencia; Buenos Aires; 2/9/02.. A partir de então o movimento começa a mostrar um alto grau de consolidação, não apenas no que diz respeito à quantidade de piquetes realizados[[De acordo com o relatório publicado pelo jornal Clarín, em 2001 registraram-se 1383 piquetes; em 2002, até 26/6, foram 1609 em todo o país. Ver informações em Anexo: Piqueteros em números. e ao seu nível de organização, mas também à execução de atividades vinculadas à administração econômica e ao trabalho social e cooperativo, como pode-se observar através das hortas, restaurantes, e creches comunitárias[[Este aspecto será analisado especificamente na próxima seção..

O movimento piquetero

Embora os piquetes tenham surgido no começo dos anos 90, os piqueteros foram progressivamente “ganhando as ruas” no final da década, adquirindo uma significativa visibilidade pública nacional e global a partir dos acontecimentos de dezembro de 2001. Através de sua estratégia de luta, os piqueteros conseguiram estabelecer uma importante linha de resistência e uma capacidade de mobilização massiva da qual poucos movimentos dispõem. Com a ocupação dos espaços públicos – ruas, caminhos e estradas – o movimento procura afetar diretamente a esfera de circulação do capital. O fato de ter encontrado esse ponto vulnerável do sistema abriu, sem dúvida, um novo horizonte de possibilidades não só para esse movimento, mas também para outros movimentos atuantes no país.
Os piquetes não apenas geraram uma forte identidade comum – aglutinada na polêmica figura do “desocupado” – mas também contribuíram para a criação de novas redes de solidariedade e de produção, isto é de um conjunto de atividades financiadas pelos planes trabajar concedidos pelo estado. É importante salientar que nem todos os piqueteros recebem de forma igualitária esses subsídios já que é o próprio movimento – e mais especificamente cada uma das facções e grupos que o integram – quem administra a distribuição dos planes.

Esse subsídio (plan trabajar) tem um valor de 150$ – equivalente a US$ 50 – e é distribuído mensalmente pelo Ministério de Trabalho aos beneficiários indicados pelos diversos grupos que compõem o movimento[[Cada um dos grupos encaminha mensalmente ao Ministério de Trabalho uma lista contendo os nomes dos beneficiários.. As condições para ter acesso aos planes são: ser chefe de família, possuir um filho (ou mais de um) menor de 18 anos, ou com mulher grávida. Em contrapartida, os beneficiários devem cumprir 4 horas de trabalho diário de diversas tarefas comunitárias conduzidas pelo movimento, além de participar das atividades vinculadas à organização dos piquetes. Normalmente, a maioria dos piqueteros contribui com uma pequena quantia – entre 3$ e 10$, valor que equivalente a 1 e 3US$, respectivamente – para financiar as atividades comunitárias e cooperativas desenvolvidas pelos diversos grupos.
Em relatório publicado pelo jornal argentino Clarín[[Jornal CLARÍN. Buenos Aires, 4/9/2002. “Piqueteros: El Estado les da casi 20 millones al mes”. foi divulgado que o estado argentino distribuiu no mês de agosto de 2002 um montante de 129.000 subsídios, o que representava uma despesa de quase 20 milhões de pesos – ou seja, aproximadamente 6,6 milhões de dólares – por mês.
Atualmente o estado está substituindo os planes trabajar por “subsídios para desempregados” conhecidos como planes jefes e jefas del hogar. Trata-se aparentemente de um subsídio de caráter mais universal, já que estaria destinado a qualquer chefe (homem ou mulher) de família do país, desocupado/a, com filhos menores e que não estivessem recebendo nenhum outro benefício social. Segundo o citado relatório, 3 milhões de argentinos solicitaram esse subsídio, sendo que em setembro de 2002 1.977 milhões já estavam recebendo o benefício. A distribuição dos planes implicou uma despesa para o estado de 296,5 milhões de pesos – valor que equivale a 98,8 milhões de dólares.
Dentro do movimento podem ser identificadas várias facções. Por um lado estão as organizações mais estruturadas que contam com a participação de grupos ligados e/ou oriundos de partidos políticos e centrais sindicais; e por outro, podemos reconhecer a existência de grupos independentes e autônomos[[As informações que apresentamos a seguir foram obtidas do Jornal CLARÍN. Buenos Aires, 1/9/2002. “Piqueteros: la cara oculta del fenómeno que nació y crece con el desempleo”. Ver informação em Anexo: Piqueteros em números..
Ligados à Central de Trabajadores Argentinos (CTA)[[A CTA é uma nova central de trabalhadores, ocupados e desocupados, que foi criada em novembro de 1992 em oposição ao sindicalismo tradicional cuja finalidade era implementar um novo modelo sindical, baseado em três princípios: “a filiação direta, uma democracia plena e a autonomia política” que constituem os “preceitos fundamentais para a construção quotidiana da força dos trabalhadores”. – uma organização sindical de tipo novo – integram este bloco a Federación Tierra y Vivienda (FTV) e a Corriente Clasista y Combativa (CCC), com sede no município de La Matanza, na área metropolitana de Buenos Aires. A CCC reúne pessoas provenientes do partido peronista, mas também desocupados independentes. Ela representa em termos quantitativos o bloco mais importante do movimento, já que conta com 130.000 membros e recebe mensalmente 90.000 planes trabajar. Em termos relativos, observamos que esta organização detém aproximadamente 70% dos subsídios concedidos para o total do movimento. Sua área de atuação alcança, além da área metropolitana da Capital Federal, grande parte do interior do país, principalmente as províncias localizadas no centro, norte e nordeste argentino. Esta facção se inscreve na linha mais moderada – tanto no que diz respeito às estratégias de luta quanto na relação com o estado – já que aceita a existência de múltiplas e variadas estratégias de ação “por dentro e por fora das estruturas de poder”. Na maioria das vezes organiza piquetes parciais, deixando espaço para a circulação, para assim evitar confrontos diretos com a polícia e com a população. Contrariamente às outras facções, este grupo participou mais ativamente do processo eleitoral, postulando candidatos[[Vale a pena mencionar que o próprio D’Elia, líder da FTV é deputado provincial de Buenos Aires. e aceitando também cargos políticos.
Integram o denominado Bloque Piquetero o Movimiento Teresa Rodriguez e o Polo Obrero, diretamente ligado ao Partido Obrero (PO) que se inscreve na linha do “comunismo revolucionário”. Esta facção conta com 35.000 membros, recebe 20.000 planes ao mês e conta com o apoio das organizações Barrios de Pie[[O movimento Barrios de pie nasceu em dezembro de 2001, é formado por trabalhadores/as desocupados/as e atua diretamente em diversos bairros ao longo do país. Além de lutar contra a fome, a pobreza e a desocupação, o movimento organiza uma série de atividades comunitárias e empreendimentos produtivos tais como restaurantes populares, hortas, padarias, oficinas de educação popular e outras ações vinculadas às áreas de cultura e comunicação. Todas essas atividades são organizadas através do trabalho coletivo com os vizinhos dos bairros, envolvendo professores, estudantes e profissionais de diversas áreas que participam ativamente da organização. e do Movimiento Independiente de Jubilados y desocupados (MIJD[[Surgido há mais de dez anos, esse movimento envolve desocupados e aposentados que lutam pela obtenção de melhores condições de trabalho e vida. Também organiza atividades comunitárias, especialmente em restaurantes populares destinados a pessoas da terceira idade e aposentados. ). O MIJD recebe 9000 subsídios que administra de forma independente. O Bloque Piquetero, por sua vez, fica com 16% dos planes concedidos para o total movimento, enquanto o MIJD detém 7% do total dos subsídios. A área de influência do bloco localiza-se principalmente na área metropolitana de Buenos Aires, embora também tenha atuação expressiva na cidade de Mar del Plata (Província de Buenos Aires) e nas Províncias de Córdoba e Chaco.
O Movimiento de Trabajadores Desocupados (MTD) é constituído por dois grupos: a Coordinadora de Trabajadores Desocupados (CTD) e a Aníbal Verón, conhecida também como MTD Solano[[A denominação MTD Solano relaciona-se ao fato de que a sede da organização está localizada na Rua Solano, no Partido de Lanús, área metropolitana de Buenos Aires., com sede no município de Lanús, área metropolitana de Buenos Aires. Este grupo conta com 15.000 membros ativos e recebe 9000 subsídios ao mês, o que representa 7% do total dos planes outorgados para o movimento. Esta organização opera a partir de 13 centros localizados principalmente na área metropolitana de Buenos Aires.
Essas duas últimas facções – Bloque Piquetero e MTD – mantêm uma postura política radicalmente oposta às da CTA, já que se inscrevem na linha “mais dura” do movimento: praticam piquetes totais e se mantiveram à margem do processo eleitoral.
Embora cada grupo atue de forma autônoma e independente no que diz respeito às formas de organização e a determinação dos programas de luta, existem instâncias de discussão e coordenação entre as diferentes frentes que integram o movimento[[Neste sentido, o denominado Congreso Nacional Piquetero realizado no primeiro semestre de 2001 conseguiu reunir todas as experiências piqueteras do país. Embora o objetivo de criar uma coordenadoria nacional não tenha sido totalmente cumprido, uma vez que não houve consenso por parte de todos os grupos, este evento representou um momento chave na constituição do movimento, principalmente no que diz respeito ao amadurecimento e visibilidade da luta, ao alto nível de organização alcançado, e as diferenças existentes entre as várias facções existentes. . Porém, ao longo de todo o seu tempo de vida existiram inúmeras tentativas – fracassadas no final – oriundas das facções mais numerosas, orientadas a hegemonizar o movimento, e assim criar uma única organização centralizada.
Também os denominados punteros de partido e os caudilhos locais utilizaram diversas estratégias para frear e cooptar a luta piquetera, oferecendo subsídios diferenciais e privilégios para os líderes potenciais. “Los políticos cotizan a los compañeros, les ponen un precio”[[“Detrás de los piquetes”, disponível em http//www.lavaca.org e acessado em 18/1/03. – afirma um dos militantes ativos do MTD Solano – porém existem muitas famílias carentes que ainda preferem buscar auxílio com estes novos interlocutores em lugar de ficar amarrados ao clientelismo político tradicional.
Todas as diversas organizações que constituem o movimento compartilham as seguintes características: a) utilizam o piquete como estratégia de luta (embora não exclusivamente) com o propósito de interromper o ciclo produtivo, especificamente na fase da circulação; b) recebem subsídios do estado através dos planes trabajar: c) reúnem pessoas que se reconhecem como ou se encontram na situação de “desocupados”, isto é, estão sem emprego formal e estável.
As diversas agrupações utilizam diferentes estratégias para decidir o programa de luta, sejam piquetes, passeatas ou qualquer outro tipo de manifestação pública. No caso do MTD Solano, as propostas são discutidas de forma descentralizada, a partir dos informes e discussões realizadas em cada um dos centros regionais. Em seguida, as decisões de cada núcleo são encaminhadas para a assembléia geral, onde são avaliadas e votadas de forma coletiva. Nesse âmbito, também são distribuídas as tarefas e funções que cada um dos membros deve assumir. Nos agrupamentos vinculados à CTA, as decisões são tomadas de forma centralizada: as lideranças apontam as propostas que são diretamente votadas “contra ou a favor” pelos membros.
Os piquetes constituem claramente uma nova modalidade de luta que congrega aqueles que foram expulsos dos centros fabris. Neste sentido, a noção de “desocupado” aparece também como uma figura controvertida, particularmente no que diz respeito à criação de uma identidade comum. O MTD Solano foi talvez a organização que mais avançou neste sentido, já que não se define exclusivamente como um movimento de desocupados, pretendendo instalar novas formas de produção e de trabalho para além da relação salarial, isto é, do emprego formal. Nesta perspectiva, as atividades comunitárias e autogeridas tornam-se centrais, pois o movimento se constitui como um âmbito no qual cada membro assume uma tarefa, uma responsabilidade, criando novas modalidades de trabalho e organização. Os integrantes desta organização “não procuram trabalho” já que os esforços orientam-se no sentido da construção de uma comunidade e de uma economia autogerida, caracterizada pela presença de diversos micro-empreendimentos (hortas, padarias etc.)
Para o movimento, a luta não implica apenas sair às estradas para interditá-las e confrontar com a policia para obter novos subsídios do estado. Trata-se, isto sim, de incorporar também novas formas de ação a partir da criação de relações de produção e de associação solidárias, coletivas e comunitárias. Nas palavras de um militante do MTD Solano:
“Poco a poco fue haciéndose evidente que había surgido un nuevo método de lucha. Comenzamos a armar talleres productivos, a hacer capacitación, educación popular, y todas esas cosas que son más importantes que estar en la ruta. Porque estar en la ruta es lo que se ve, y aparece como si ahí estuviera todo, pero la lucha es fundamentalmente todo lo anterior que veníamos haciendo”[[MTD Solano e Colectivo Situaciones; Hipótesis 891: Más allá de los piquetes; Buenos Aires; De mano en Mano; 2002; p. 55.
A operação piquetera consiste em estabelecer uma relação complexa (e até contraditória) com o aparelho de estado, recriando novas formas de habitar e ocupar o território. Ao mesmo tempo, esta particular estratégia de luta reformula a sua relação com a tradição sindical com a qual tem, sem dúvida, fortes pontos de contato. Os piqueteros retomam assim muitos elementos e saberes da luta operária das décadas anteriores, uma vez que a idéia do próprio piquete foi resgatada dos piquetes de fábrica. Embora possamos reconhecer elementos de continuidade entre uma e outra forma de luta, também é evidente que as condições, concepções e procedimentos utilizados hoje são completamente diferentes. Neste sentido, podemos afirmar que os piquetes não herdam exclusivamente os conhecimentos da experiência sindicale das lutas anteriores porque também incorporam elementos novos. Se no período anterior o trabalhador contava com a capacidade de interromper o ciclo produtivo através da greve que implicava uma forma de luta limitada ao espaço fabril, hoje o piquete assume uma condição essencialmente territorial. Baseado no bloqueio da circulação de pessoas e mercadorias[[Como mencionamos anteriormente, o regime de acumulação se estabelece atualmente na base da livre circulação do capital, no sistema de produção flexível e na centralidade das esferas cognitiva e comunicacional, tanto para as atividades produtivas quanto na organização do trabalho., o piquete supõe também a criação de novas possibilidades de conexão com o tecido social, operando assim como uma forma de socialização, compartilhando saberes, e estabelecendo laços sociais com as comunidades (bairros e vizinhos) e com outros movimentos. Nas palavras de um piquetero do MTD Solano:
“Con los piquetes hicieron estallar la apatía, pero de una manera alternativa. Sacudimos al país de los dulces sueños que vendía Menem y toda esa política, y fuimos como el estallido de una nueva luz [… Piqueteros fue el nombre que nos pusieron, y para nosotros fue la forma que tuvimos de hablarle a la sociedad entera, de decirles que había otras formas de luchar […” [[MTD Solano y Colectivo Situaciones; Hipótesis 891: Más allá de los piquetes; Buenos Aires; De mano en Mano; 2002; p. 54.
Sem dúvida, a relação dos piqueteros com o estado constitui um aspecto controvertido, especialmente no que diz respeito à distribuição dos planes trabajar. Para alguns, esta luta está ancorada basicamente no clássico esquema de “paus e cenouras”, podendo ser resumida à seguinte seqüência: cortes de estrada-repressão-negociação com estado-novos subsídios. Sob esta perspectiva, os subsídios estariam operando como uma estratégia de cooptação por parte do estado para tentar conter a luta piquetera. Entretanto, há quem veja a distribuição dos planes como “a única saída para que as pessoas não morram de fome”[[Jornal CLARÍN; Piqueteros: el Estado les da casi 20 millones al mes”, Buenos Aires; 4/9/02. e, finalmente, os que consideram os planes como uma possibilidade concreta de contar com recursos econômicos para desenvolver uma organização política e produtiva de caráter autônomo, isto é, sem que o estado imponha planos ou programas assistencialistas e arbitrários. Neste sentido, os subsídios não são considerados simplesmente um resultado das “negociações” entre o movimento e o aparelho do estado, mas como uma autêntica conquista, um direito que foi “tomado” – no sentido de saque – do próprio estado para continuar construindo e mantendo a organização. “Nadie nos dio estos planes, se los arrancamos al estado”[[“Detrás de los piquetes”, disponível em http//www.lavaca.org e acessado em 18/1/03.
Finalmente, a relação dos piqueteros com as forças policiais abre também uma outra linha de conflito com o aparelho do estado. Os confrontos, a violência e a repressão estão, sem dúvida, presentes na maioria dos piquetes e manifestações conduzidas pelo movimento. Cabe lembrar aqui que o MTD Solano foi vítima de assassinatos por parte do poder policial. Neste sentido, as mortes de Dario Santillán e Maximiliano Kosteki não podem ser interpretadas como uma casualidade no caos, mas sim como crimes planejados pelas forças repressivas do estado.

Considerações finais

A pergunta que se faz necessária para pensar a complexa relação estabelecida entre os piqueteros e o estado é: se os subsídios fossem tirados, o movimento desapareceria?
Apesar das diferentes agrupações estarem cientes de que os planes funcionam efetivamente como um mecanismo de agregação, todas reconhecem que a existência do movimento vai efetivamente além dos subsídios. Talvez os piqueteros perderiam várias filas de militantes, mas a sua presença é hoje um fato inquestionável. Nas palavras de um líder do FTV:
“Tengo la certeza que, más allá de los planes, somos muchos los compañeros que seguiríamos en la organización. Pueden cortarnos los planes, mandarnos al aparato represivo y todo lo que quieran, pero lo que hay aquí es una forma de pensamiento diferente, y eso no lo van a poder derrotar”[[Jornal CLARÍN; Piqueteros: el Estado les da casi 20 millones al mes”, Buenos Aires; 4/9/02.
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Sem dúvida, o movimento piquetero faz hoje parte da realidade argentina, reunindo um total de 180.000 militantes, dentre os quais 129.000 recebem subsídios do estado. Suas imagens, depoimentos e ações estão continuamente presentes na vida cotidiana dos argentinos: piqueteros con pasamontañas, junto a las barricadas y el humo negro de los neumáticos al quemarse (…)[[“Detrás de los piquetes”, disponível em http//www.lavaca.org e acessado em 18/1/03..
Hoje, em 2003, podemos dizer que os piqueteros constituem um verdadeiro “movimento de movimentos” já que ele agrupa uma variedade múltipla e heterogênea de experiências, ações e de agrupações constituídas por sujeitos de diversas concepções e trajetórias de vida. Como podemos observar, os piquetes nasceram fora das instituições políticas e sociais tradicionais, as quais não foram capazes de reformular suas linhas de ação e modalidades organizacionais para melhorar as condições de vida de importantes camadas da população argentina.
Os piqueteros não esperam pelas respostas do estado para levar adiante suas atividades comunitárias e produtivas; trabalham para a construção de projetos e programas alternativos. Neste sentido, reconhecem também as tensões que devem enfrentar de forma cotidiana tanto “para dentro” quanto “para fora” do movimento. Como atestam as palavras de um militante do MTD Solano:
“Nosotros sabemos que la total autonomia la vamos a tener cuando seamos capaces de sostener todas lãs tareas y lãs cosas que se están haciendo sin que el Estado ponga um plan [… la Idea es que esa dependência com el Estado sea cada vez menos necesaria”[[MTD Solano y Colectivo Situaciones; Hipótesis 891: Más allá de los piquetes; Buenos Aires; De mano en Mano; 2002; p. 64.

Também devemos destacar que as mulheres constituem figuras chave do movimento porque, além de conduzir os núcleos ou centros regionais, assumem diretamente tarefas vinculadas às atividades comunitárias e produtivas.
“Mientras los hombres se dedican a cavar zanjas, en los comedores, en los ‘roperitos`, enfermerías hay manos de mujeres por detrás [… cargan cacerolas, los hornos preparados para ser móviles y se ocupan de la organización interna”[[JORNAL CLARÍN; Piqueteros: las mujeres empujan y van al frente; Buenos Aires; 3/9/02

A partir desta análise podemos observar que a luta piquetera conjuga elementos velhos e novos: reivindicações históricas de “inclusão social” com os problemas próprios da fase atual do capitalismo globalizado.
As novas militâncias, práticas e formas de fazer política do movimento piquetero – bem como de outros movimentos que surgiram após os acontecimentos de dezembro – criaram condições para a emergência de uma outra densidade social. Se por um lado podemos reconhecer uma marcada ausência do comando estatal, também nos defrontamos hoje com uma complexa, múltipla e aberta trama de redes políticas de tipo novo. Redes estas que, frente ao vazio de poder estatal, e contrariando previsões apocalípticas, definem espaços cheios de potência, onde “o novo” tem a capacidade de criar dinâmicas políticas e sociais efetivamente democráticas e constituintes.